Invisibilidade e pena - O ônibus 174

Eu queria escrever um texto acadêmico, um texto sério, mas não posso, não me permito fazê-lo. No início, após ter assistido o filme/documentário "O ônibus 174", pensei em escrever um artigo que tivesse como centro das discussões a criminologia etiológica de Lombroso e as desigualdades social do Brasil. Na verdade eu nem sei se daria certo o tal artigo, mas o fato é que o meu eu poético não me permite, o verso e a prosa dizem mais com seu sentimento - talvez até uma crônica jornalística, dessas que se ouvem em matérias sobre fome e pobreza daria certo – e é isso que tentarei dizer pra vocês amigos, esse sentimento de raiva, de impotência, de descrença que me toma a cada fato como esse.
Toda a trama se inicia com um "comum" assalto à ônibus na avenida Jardim Botânico, na cidade do Rio de Janeiro. Até aí tudo estava correndo bem, de um lado o marginal, do outro os passageiros, que aceitariam a situação passivamente (ele portava uma arma). O problema é que o roubo, um simples 157 aumentado pelo uso da arma (§ 2º, I do mesmo artigo, CP), se transforma num sequestro, com achegada da polícia, e esse sequestro se torna um imenso espetáculo midiático.
Como protagonista está Sandro dos Santos (O vagabundo sequestrador) e as vítimas, em sua maioria mulheres e jovens, todos dentro do "Ônibus 174". E como coadjuvante está a Polícia Militar e o BOPE (batalhão da PM), na tentativa de resolver o conflito e apreensiva pela falta de instrução e estrutura física e técnica.
Pronto. O circo está armado e sendo transmitido pra todo o país em todas as emissoras de televisão aberta, o Brasil para pra ver o maior sequestro e o primeiro transmitido em rede nacional e em tempo real em toda a "história circense" da nossa televisão. O roubo que não é mais roubo, agora tentativa, as vítimas mantida como reféns e a realidade nojenta de um país da mesma estirpe.
Ao ver que a sua vil existência estava tomando dimensões incríveis e que após o término do sequestro/espetáculo restariam dois fins inevitáveis (a morte ou o cárcere), Sandro toma as rédeas e dá partida no seu vôo surreal e aterrorizante. Surreal porque com a violência, com o porte da arma em mãos, Sandro perdera toda a invisibilidade que o afogava no nada, perdera a carga do estigma social que o tornava invisível (marcado à força) e sentira-se o ser mais provido de visibilidade: Sandro enfim insurgia e era visto, por um sentimento falso de potência, uma sensação inversa do uso da força para se sentir alguém. E aterrorizante porque no decorrer do sequestro, nos deparamos com duas realidades conflitantes: a doa marginal maléfico (o câncer social) e a do jovem impotente, do jovem esquecido, negligenciado pela sociedade.
Estamos falando aqui, amigos, de seres que passam e ninguém vê, de jovens que diariamente são ignorados, de meninos e meninas, que trazem uma carga negativa, uma etiqueta negativa que os impede de serem olhados além daquilo que se atribui nessas etiquetas. Quando se coloca uma etiqueta negativa em alguém, toda a possibilidade de um olhar além é negada, toda a possibilidade de ver um ser que sente, que pensa, um ser que sofre não cabe, porque com isso dá-se um processo de aniquilação dessas pessoas, desses jovens. Eles não existem como gente, e sim como marginais, é com a negação que se dá aniquilação, porque ninguém quer esses jovens na sua rua, ninguém quer esses jovens perto de si, então os matam aos poucos com a invisibilidade. Estamos falando de jovens que estão com fome de importância, que não suportam mais viver uma vida fantasma, que não suportam mais ter que pegar em armas para serem encarados, que não suportam mais olhares de medo em relação a eles. Jovens que clamam por uma família, jovens que estão com fome de existência, porque eles não existem para a sociedade. Essa mesma sociedade que os produz, sociedade que cria milhares de Sandros, marginais, invisíveis e que os destrói, que os aniquila.
As câmeras de televisão e os flexes de jornais representavam uma saída no fim do túnel para Sandro, porque quem iria matá-lo ao vivo? A presença da mídia representou um viés de escape para um final menos trágico. Sandro encenou uma situação criando dois diálogos, o de quem estava dentro do ônibus e o de quem estava fora, e mostrou pra todo o Brasil a fragilidade do ponto de vista midiático e do senso comum, como um todo, que generaliza, impossibilitando uma extrapolação da interpretação, porque toda a generalização se torna superficial e acaba com as particularidades, com os "aléns".
O homem delinqüente estava posto pra quem quisesse ver, um homem que é construído socialmente, um homem que representa todo o medo social, o medo que as pessoas têm de si mesmas, o pavor de admitir a sua própria torpeza, atribuindo ao outro a parte suja, o lado nebuloso da história. O homem delinqüente era mal por natureza, porque não tinha uma explicação lógica para o crime que ele estava cometendo. Era um vagabundo, um sem vergonha, um desgraçado, um drogado, um traficante (terrível traficante!), era o mal da sociedade. O homem delinqüente precisava morrer!
A saída que Sandro arranjou era inevitável, ele sabia, não tinha como fugir, não tinha pra onde recorrer, estava cercado por todos os lados. Sandro estava sendo vigiado, faltava-lhe a punição, faltava-lhe a pena. "O espetáculo diz o seguinte: que no final é a morte do bandido". A pena seria- lhe aplicada sem nenhum processo legal, era a pena da inquisição sendo colocada em prática novamente, numa sociedade ainda com concepções medievais.
À polícia coube o papel que os ali presentes quiseram fazer (nem sempre é assim), a polícia matou Sandro e finalizou o espetáculo com a justiça feita com as próprias mãos (Do Estado). o Estado, que à princípio surgira para impedir a justiça privada, fez o que é papel dele reprimir (que trágica contradição, não?).
Animais. Eram muitos animais, uma manada, não sei dizer a espécie, me parece que daquelas mais ferozes, daquelas mais loucas, mais impulsivas, animais desgraçados, que matam a si próprios pensando que estão matando o outro. Malditos animais! Malditos animais que queriam levar pra casa o troféu, um pedaço do corpo do bandido, agora assassino (Geísa, a mulher que Sandro levou pra fora do ônibus morre inicialmente com um tiro da polícia e posteriormente com 3 tiros de Sandro – segundo o inquérito policial).
Foram duas vítimas ao total: Geísa e Sandro. Duas vidas que representavam uma só realidade, a da menina que queria ser alguém na vida, oriunda de família humilde e que estava lutando e a de um garoto que, quando menino viu sua mão ser morta em sua frente, fugiu de casa com sete anos, não teve instrução nenhuma, achou seu abrigo nas caçadas das ruas do Rio de Janeiro, não sabia ler nem escrever, era invisível (um fantasma social) e teve seu momento de glória apagado pelos policias que o prenderam e o aniquilaram, enfim, a realidade da pobreza brasileira.
"Foi a polícia que matou os colegas de Sandro na Candelária e foi a polícia que completou o trabalho sujo, é como se as duas pontas se fechassem: à polícia cabe o trabalho sujo que a sociedade não quer ver, mas que em algum lugar obscuro dos seus pensamentos deseja que se realize, que se anulem os "Sandros", que os "Sandros" desapareçam das nossas vistas, nós não queremos ver essa realidade, não queremos suportar essa realidade. Então a invisibilidade é, ao final, reconquistada pela produção policial da invisibilidade, através da anulação que a morte gera." (Luiz Eduardo Soares, em depoimento no filme)
A pergunta que ficou ao final do filme é: Quem é que vai defender um Sandro? Num momento onde o instinto animal é aflorado pela imagem do criminoso, a primeira reação é atacar, a hipocrisia toma a sua maior face nesse momento, no momento onde os cidadãos de bem vão pra cima do homem mal para arrancar-lhe a pele, os cidadãos de bem que precisam zelar pela paz social, os cidadãos de bem que representam tudo o que é solidariedade social, que ajudam seu próximo, fazem suas doações em instituições de caridade, dão seus dízimos em igrejas, os cidadãos de bem que são exemplos para todos seguirem, cidadãos de bem que necessitam fazer justiça com as próprias garras. Quem vai defender um marginal? Existe alguma lei que o proteja?
Um policial, em depoimento no filme, disse o seguinte: "Quem, naquela patama, não mataria aquele sequestrador?". A resposta que vem é a de que estamos em uma sociedade da animais, verdadeiros animais, que não pensam e dizem que pensam e que, com isso, negam a sua própria condição de humano.
O que fica, após assistir à todas as aquelas cenas marcantes, é a idéia de que estamos numa sociedade onde o espetáculo das tragédias diárias é um espetáculo que camufla toda a compreensão profunda da verdadeira causa do problema social brasileiro, um espetáculo que legitima a força punitiva do Estado, mudando o foco do problema, que inicialmente seria o de resolver as desigualdades, e que posteriormente se caracteriza pela caça aos bandidos. A tragédia do "Ônibus 174" foi uma tragédia que deixou bem explicitado as duas faces problema da desigualdade e como consequência a marginalidade, criminalidade, invisibilidade e a "pena"( como a ultima tentativa, como a finalização do processo de aniquilamento de certa camada social, tornando-os únicos responsáveis por seus próprios "destinos" e isentando todo o resto da população e o Estado, como ente capaz e responsável pelo "bem estar" dos cidadãos, à princípio, iguais perante a lei).
A pena a qual eu me refiro não é aquela pena estatal, na sua concepção jurídica, mas uma pena (no sentido de penitência e de sanção mesmo) que se inicia desde o início do desenvolvimento social, uma pena caracterizada com o etiquetamento, e logo após pela "procura" dos etiquetados, intensificado pelo processo já referido da invisibilidade, em que vidas são tornadas fantasmas, são negligenciadas pelo poder estatal e sociedade como um todo, processo esse que se finaliza com o extermínio desses escolhidos. Extermínio, que na grande maioria das vezes é transmitido como forma de show, colocando o vagabundo capturado, ou morto pelas mãos do Estado e o "herói exterminador" que é aplaudido pelo restante do corpo social como uma forma de se sentir mais protegido da insegurança implantada não pelos marginais, mais resultado da própria sociedade, que como já disse, os cria.
Mário Davi Barbosa.
Setembro de 2006.
2 Comments:
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Gabriela Jacinto disse...
A visibilidade disputada pelos nossos meninos tão pobres quanto nós é imensurável. Para sentir a sensação de visibilidade, o olhar de outro busca a potencia, em determinadas coisas e situações,numa arma, roupa com marca, um tênis, etc....para só então ser enxergado, adimirado ou simplesmente aceito em uma sociedade excludente, onde cada homem busca o seu capital, a mais-valia, o seu pão, e o outro? que outro? não vemos ninguém, ou melhor só vemos quando aparecem de alguma forma, seja em assalto, sequestro,ou algo do genero, pois não se tem oportunidades aqui, alguns poucos até aparecem de forma positiva para sociedade, mais ai é questão de sorte, de oportunidades....é realmente este filme (documentário) é chocante, busca retratar os dois lados, os porques, não o puro bandido que todos almejam vingança e sim um ser humano largado, vitima de um contesto social, sem opurtunidades, excluido da parte "boa" que rege a sociedade...Enfim, querem acabar com todos que não tem espaço perante a sociedade de "bem", como acabaram com o Sandro.
Adorei o texto, muito bem escrito, argumentado, parabéns.
Gabriela J.
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